“Vim, vi, venci”
Um balanço Singular
Cheguei. Cheguei enfim aos meus sessenta anos!
O que fui? O que não fui? Terei sido a esposa dos sonhos? A mãe renúncia? A filha que os pais sonharam? Do que me arrependo? Quem sou eu hoje? São perguntas que pairam na minha cabeça e que eu mesma vou descobrindo as respostas.
O que fui? Um ser dentro dos limites do viver, nada de superlativo - não gosto dos analíticos tão pouco dos sintéticos
Esposa? Nada convencional, seria hoje uma sexagenária entediada com a vida a dois
Mãe? No limite, nada padrão, não deixaria jamais me influenciar por conceitos pré-concebidos - viver só em função dos filhos e do esposo, coisa mais sem sentido, mais esdrúxula! Ser escrava da minha própria prole, e do homem que escolhi para seguirmos juntos, lado a lado. - Para minha cabeça “feita” seria uma mulher simplória, quem sabe uma nova versão da Macabéia de Lispector.
Não conseguiria vê a banda passar sem participar da dança, eu era a própria banda – liberdade pela liberdade. Eu determinei os meus próprios mandamentos de mãe, a minha Tábua de Moisés, e tenho plena consciência que fui mãe sem deixar de amar, cuidar, trabalhar, me divertir... Ser eu mesma. Mais que isso seria exploração, possessão. Não permito que debitem a mim fracassos, frustrações, neuras advindos das suas próprias escolhas. Fui fiel aos meus cinco mandamentos:
I - Amá-los, dar-lhes colo, acarinhá-los – que coisa boa, que gostosura! Porém, jamais abrir mão do meu espaço, da minha individualidade.
II - Orientá-los até onde eles me permitissem ser o seu porto seguro.
III - Deixá-los livres para aprenderem a dar saltos cada vez mais altos sem a minha interferência e se algum caísse estaria sempre de braços abertos para ampará-lo, envolvê-lo, sofrer com ele, cuidar do meu filhote querido, embora deixando clara a minha reprovação pela forma irresponsável de saltar, contudo, Jamais deixar de encorajá-lo e apoiá-lo em novos saltos. Se não quiseram saltar, não os julgo nem os condeno. Mas, carrego comigo a frustração pelo salto de qualidade que não vi, não aplaudi. Culpa minha? Por quê? Por não carregar comigo o DNA da mãe estereotipada?
IV - libertária ao extremo, aberta a todo e qualquer diálogo, mesmo sabendo que poderia estar sujeita a ouvir aquilo que toda mãe gostaria de retardar o mais tarde que fosse possível: a primeira relação sexual.
V – Levá-los para passear, e virar criança como eles. – Nesse mandamento que me desculpem a falta de modéstia, mas preciso fazer justiça a mim
mesma: mergulhei nas fantasias deles na minha essência total. Defendi-os como uma loba quando se sentiram ameaçados por tramas tecidas no seio da própria família. Fui liberal nas correrias desenfreadas pelos shoppings entre vitrines e araras, e dos tantos copos de refrigerantes derramados pela total falta de modos – eram crianças, melhor fazerem na infância que quando adultos. Esses foram verdadeiros programas de “índios”, e eu me sentia o próprio cacique e fazia questão de aumentar a tribo quando levava comigo também os sobrinhos. Os pais não teriam estrutura psicológica para aquentarem as flechadas desses “peles- vermelhas” – Ah como eu adorava a bagunça deles! – voltavam pra casa sem sapatos, outros sem camisa... Eu achava tudo natural, lembro que minha mãe ficava horrorizada por eu não chamar atenção das travessuras. Reconheço que algumas vezes extrapolei no “deixar rolar”. Certa vez, quase que dois deles correndo provocaram um acidente ao se baterem em uma vitrine, na hora não sei o que foi pior: pensar que poderiam ter se machucado, ou a cara de poucos amigos do proprietário da loja a julgar-me, pela expressão do seu rosto, a minha total inapetência no controle das crianças - esse com certeza não teve infância, foi podado pelos parâmetros de uma educação preconceituosa.
Mas, bom mesmo era a ilha, aí sob a minha vigilância gozavam de liberdade de uma vida sem frescuras; influenciados por mim, aprenderam a nadar, ir para o mangue - atolados na lama até o pescoço, se cortavam nos cascalhos de cascas de ostras - pescar siri, caranguejo, marisco . fazíamos travessia em barcos a velas de segurança duvidosa, para praias desertas pelo prazer do banho na água cristalina e morna onde podia-se ver os cardumes de peixinhos passarem tranquilos. Certa vez atravessamos com uma amiga que tinha filhos também – ela não tinha a menor idéia que a aventura não era tão segura, achava que como eu já tinha costume, sabia perfeitamente o que estava fazendo – Até hoje não me sai da memória a cara de pavor de Carmelita, quando fomos apanhados de surpresa por uma tempestade de verão violenta. Ela era enfermeira e dizia apavorada a todo o momento pra mim que as crianças não iam resistir. Batiam o queixo de frio, os lábios roxos... Meu irmão tentou improvisar uma espécie de cabana com palhas de coqueiro para abrigar pelo menos os pequenos. Enquanto isso, lá na casa da ilha, meu esposo havia chegado de Salvador, e juntamente com Lica minha irmã - comodista que só, não quis aventurar-se e ainda “botou lenha na fogueira” - imaginavam preocupados, o que se passava do outro lado. Ficou muito bravo comigo por expor os filhos a riscos presumíveis como ele costumava dizer– achavam-me louca, mas eu pensava na aventura que meus filhos
no futuro poderiam contar – a vida sem riscos é tola. Os riscos nos fazem gigantes - Virávamos a tribo dos "caras-sujas". E as festas na ilha? Deus como eu era criticada pela família! Os meus filhos eram vistos como influência negativa para os outros. Afinal tanta liberalidade não daria em coisa que prestasse. Mas eu não cedi nas minhas convicções de educação-liberdade-com-responsabilidade. Quantas vezes contestei as idéias retrógadas dos meus irmãos em relação aos meus sobrinhos... Hoje desfruto do amor deles - pelo menos de uma, tenho certeza, como se mãe também fosse – Obrigada Senhor!
Apesar de toda essa liberdade, é claro que também tinha que impor limites e cobrar responsabilidade - os momentos dos nãos, dos castigos, da privação de algum passeio, dos programas de televisão e por fim a minha “carta na manga” - dizia que se perdessem de ano escolar iriam morar com a pessoa que fosse mais repressora da família – Pura falácia, morreria se tirasse um filho de perto de mim, passar dias na casa dos tios era uma coisa morar, outra totalmente oposta - Se não houvessem essas ameaças hipotéticas, colocadas como diz o ditado: apenas da boca pra fora, seria desastrosa a liberdade. Às vezes penso que de fato eles sabiam realmente que era "da boca pra fora" o que eu falava, pois não surtiu efeito algum.
Passados os anos, hoje todos casados, percebo com certa tristeza que a coragem que tanto exacerbei para que eles tomassem como mote na vida, foi substituída na minha filha, por medos e incertezas adquiridos da convivência com a sua nova família. O esposo, uma pessoa criada com excessos de cuidados e zelos terminou se tornando inseguro, pusilânime, dependente, e cheio de psicose – Contudo não posso cometer injustiça: É um ser humano do bem, e eu o amo como um filho. Ela, em vez de acostumar-se às diferenças comportamentais dele, preferiu fundir-se no complexo dessa conduta. Sim, porque o pseudo medo que a minha filha sentia na sua fase de criança/adolescência eu classificaria mais como temperamental do que propriamente medos, fobias... Não me lembro de ter visto a minha filha algum dia antes de casar com medo de entrar em elevador, de ir para escola distante de casa, de ir tirar aos dezesseis anos um título eleitoral sozinha, de ir para a academia, aniversários dos amigos, de burlar a minha vigilância e ir ao cinema escondida com o namorado, de ir para Angra Rio Mar e não fazer acontecer, de ter medo de dormir em barracas, de sair aos dezesseis anos sozinha para comprar qualquer coisa dentro do limite do seu cartão de crédito, de ir para as baladas com o tio e as primas até as tantas da madrugada, de liderar as travessuras no colégio... Lembro sim, de uma garota muito independente, alegre, segura de si que me dava bastante orgulho. Jogava vôlei, comandava a bagunça com os primos na ilha, namorava bastante – sempre teve liberdade para isso. Namorava com um, marcava encontro com outro. Por conta dessas frivolidades naturais na sua
idade, certa vez me fez comprar um violão sob alegação de que ia tomar aulas de violão, o professor era exatamente o outro, só que eu não percebi nada e ingenuamente acreditei - ou não seria porque isso ia me encher de mais orgulho dela? Comprei o melhor violão e não demorou muito tempo perdeu o encanto - acho que a brincadeira de namorar um e paquerar outro perdeu a graça. Era admirada por muitos, pela sua desenvoltura, capacidade de fazer amigos, liberdade, beleza, roupas bem transadas – poucas, é certo - que lhe caiam no corpo feito uma luva. Tudo isso era natural que lhe causasse certa vaidade e um narizinho empinado – mas nada que eu não tivesse atenta para não deixá-la perder o que tinha de mais encantador, e todos que a conheciam mais gostava - a simpatia e alegria de viver.
Os sonhos tão lindamente sonhados deram lugar para o bicho-papão, os boitatás e tantos outros das estórias contadas na infância por um preto velho, quem sabe de um tempo mais atual, trazendo-os para a vida adulta, O que toda criança perde no caminho da vida , minha filha cuidou para que nunca se perdesse.
Dizem que o homem é produto do meio, disso não tenho dúvidas, minha filha tornou-se um produto frágil, medroso, fraco, acomodado, apático, cheio de manias sem vontade de conquistar a independência. Trocou a simpatia pela inércia e futilidade. Vive, juntamente com a sua família dentro de uma bolha imaginária que gira em torno deles próprios. Não fazem parte do eco-sistema. Uma insignificante formiga deixa-os em estado de pavor. Uma simples lagartixa aos olhos deles toma forma de um dinossauro, um cachorro por menor porte que tenha lhes parece um lince a espreita para atacar a qualquer momento. E os insetos? Parecem a eles tão aterrorizantes que preferem esvaecerem-se em suor a abrirem as janelas para receberem a brisa do vento que afaga e conforta. Causa-me melancolia ver a forma de viver deles. Infelizmente sou pequena demais para destruir esse mundo-bolha criado pelos seu esposo e acentuado cada vez mais em todos por medos exagerados, fobias e comodismos.
E os outros filhos? Em um, vejo os medos enfrentados – deixar duas filhas, pais, família... Toda uma vida para trás - é certo que cheia de loucuras – para morar em uma selva de pedra como São Paulo, sem conhecer ninguém, sem emprego, sem dinheiro, levando consigo apenas uma caixa de papelão onde colocou além da pouca bagagem que tinha suas incertezas, dúvidas, inseguranças, medo pelo desconhecido... Francamente, vejo nisso uma atitude de muita coragem! Exorcizar os medos, lutar contra a solidão, a dor pela distância das filhas, dos pais... Matando um leão a cada dia para sobreviver, é sofrível demais. Como bem disse ele, olhando pela ótica da razão, a distância se fez necessária, assim como estar juntos também é necessário ao coração dos que amam. Foi inevitável ser ferido no combate pela sobrevivência. Mas esse rito de passagem na sua vida foi causado meramente por escolhas erradas, atalhos fáceis para não fazer a caminhada toda, sonhos hipotéticos, egoísmo, e não se permitir ouvir as pessoas que mais o amava.
Sempre foi uma pessoa afetivamente dependente de pai e mãe e escondia suas fraquezas atrás de uma máscara de valentia, que muitas vezes me levou às lágrimas, desespero, medo, pavor... Não admitia demonstrar fraqueza muito menos obediência; mas a qualquer tombo levado, e foram muitos, virava uma criança, chorava e corria em busca da segurança certa do colo dos pais. Um sonhador nato, de sonhos incabíveis, se não impossíveis mas difíceis de um dia se tornarem realidade, e porque não dizer até tolos. Mas tinha, e tem até hoje a sua maior virtude - a simplicidade e a humildade de reconhecer os erros, mesmo que volte a fazer tudo novamente.
Já no outro, vejo uma coragem muito além do que lhe passei, e ao contrário do irmão, totalmente introspectivo – as dores e pancadas levadas na vida nunca deixaram transparecer para nós, e sei que não foram poucas. Ou por orgulho, ou por não querer expor as suas fraquezas, falhas e erros, o certo é
que nunca sei em que terreno estou pisando quando se trata da vida dele. Intolerante a tudo, usa de subterfúgios e não é suscetível a que lhe digam verdades. Encara com naturalidade uma conversa de sexo entre pai e mãe como se estivesse falando com um amigo muito íntimo... Se estiver bem humorado não nos nega o abraço que aquece, o beijo tenro que nos inebria, o carinho que termina por derrubar todas as barreiras. É o único filho que nos faz carinho e isso faz a diferença, mesmo com o seu descontrole sempre em alta. Como a minha filha, também perdeu o seu maior encanto- o humor espirituoso, descontraído que levava a todos, não só a família, às gargalhadas... Desanuviava qualquer ambiente. Isso era muito bom!
E enquanto filha como me saí? Acredito que nos parâmetro que me foi imposto. Tive, claro, como todo filho, minhas discussões com meus pais embora nunca deixasse de reconhecer o papel de destaque que eles ocuparam na passarela da minha vida. Jamais foi substituído por quem quer que fosse, sentia o amor do meu pai mesmo quando vinha em forma de castigo duro. Mas, nas horas da doença era sempre tão carinhoso que parecia ser outra pessoa e quando aos domingos nos banqueteava com a cana já descascada cortada em forma de “rolete” só o trabalho de nos deliciarmos com o caldo doce feito mel escorrendo pelas nossas bocas? E a jaca já toda tirada os bagos? A desistência de comer algo para deixar pra nós simplesmente porque deu-nos vontade da comida dele - já éramos adolescentes-. A alegria estampada nos olhos ao nos ver voltando das férias em Salvador, o tempo dispensado para nos ensinar matemática - fiquei "cobra" em regra de três porque ele foi meu mestre - mesmo as sabatinas que ele fazia para aprendermos a bendita tabuada, deixava clara a dedicação aos filhos. Foi meu pai que ensinou a todos nós a pilotar bicicleta, fazia com tanta boa vontade – Obrigada pai, pelos “cascudos", puxões de orelhas e o maior castigo: perder de ano e nem pensar em férias em Salvador. Doía! Doía muito, ainda mais quando ficava só. Mas reconheço que foi a melhor forma de nos educar. Isso não causou nenhum estrago na minha personalidade, sabe por que pai? Porque, como toda pessoa equilibrada preferi levar para minha fase adulta os seus atos bons e deles tirar proveito, os que não gostei tranquei-os e joguei a chave fora.
Eu não conseguia ficar muito tempo longe dos meus pais, mesmo depois de casada, a casa deles continuava sendo a minha casa, o meu porto seguro, o meu referencial de moral e conduta. Como era gostoso ir para casa dos meus pais! Aproveitava de qualquer coisa para justificar a minha ida prá lá - Dia das mães, Dia dos pais, Semana Santa, Natal, Ano novo, São João, aniversário de minha mãe, aniversário do meu pai, “feriadões”... Até quando “peguei” piolho, aproveitei para ir pra lá sob alegação que não
tinha quem catasse os terríveis bichinhos – Iraci (um capítulo à parte)era muito nova, não saberia tratar – bela de uma desculpa “esfarrapada” como se costumava dizer quando a verdade era mascarada.
Sentir a dor da saudade ao me ver separada daquela casa cheia de costumes rígidos, mas abrandado pelo amor que via nos olhos deles pelos filhos, foi para mim até hoje, a pior agressão sofrida quando se chega o momento de andar sozinho levando consigo uma bagagem pesada, cheia de ensinamentos do rumo e prumo certos do caminho a ser trilhado em busca de novos horizontes. Quando criança, essa agressão é sofrida quando vamos à escola pela primeira vez- a dor é tão grande que nos obriga à própria descoberta de um mundo até então fictício para nós.
Que me importava uma “surra”, mesmo depois de casada – meu pai descobriu que eu fumava depois que já tinha uma filha - proibições, discussões, imposições, se o amor protetor, estava sempre de braços abertos para nos socorrer? E rapidinho a raiva passava. Ah! Quisera eu, ter tido a sorte de ter o meu pai velhinho, precisando dos meus cuidados e eu em troca, desfrutando da sua companhia - Pai e mãe deveriam ser eternos! - Deus o levou muito cedo, aos sessenta e dois anos, e me restou apenas o consolo de saber que estivemos - eu e meus irmãos - ao seu lado todo o tempo que permaneceu doente no hospital. Sempre fomos assim, mesmo nas internações mais comuns, quando íamos visitá-los, um ou outro, caro custava aos seguranças nos retirar do hospital – driblávamos os bobos para ficarmos mais um pouquinho que fosse perto deles.
E a minha mãe? Hoje com a cabeça toda branquinha - o cérebro nada mais registra - demência total. Essa foi sem dúvida uma guerreira, corajosa, trabalhadora – trabalhou muito atrás de um balcão de armazém com meu pai para nós dar o melhor - trabalho pesado, em pé o dia todo vendendo, anotando nas cadernetas, pesando... Era uma baixinha ousada, do tipo não levo-desaforo-pra-casa. Vaidosa ao extremo ensinava para nós esse “pecado” - pena mãe que nessas aulas devo ter faltado muito, jogando bola de gude ou fumando um “hollyudd” escondida do meu pai - as propagandas do fumo eram tão atrativas que nos levavam a sonhar estar junto ao másculo cavalheiro - porque não aprendi nada desse assunto. Quantas surras doídas eu tomei dela! Mas não fiquei com traumas, nem mesmo quando ficava magoada com as suas preferências por alguns filhos, logo passava a bronca, seu amor por nós era superior.
E as escapulidas para Salvador a fim de matar a saudade dos pais e irmãos hem mãe? Deixava-nos com nosso pai - ficar sozinhos com ele era dia de quartel. - O velho era linha dura! - e lá vinha ela com a estapafúrdia mentirinha - não nego que ficava chateada, mas nada que viesse a trazer
transtornos nem inseguranças na minha vida adulta e deixasse de amá-la e admirá-la. - Pela “enésima” vez tinha “adoecido” e não pode voltar na data prevista – Essa ficou manjada viu mãe? Ainda na minha adolescência comecei a aceitar, entender e até ficar fã das suas estratégias. Não se pode renunciar a vontade de fazer algo que gostamos porque se convencionou que esposa/mãe se expropriaria da sua vida em troca de filhos e esposo. Meu pai era centralizador demais – ela o venerava -, mas de certo perderia o encanto pela vida se vivesse só para ele e os filhos. Contudo, nunca nos privou do seu amor, de nos ensinar os deveres escolares, sempre em cima, na marcação! - Oh Deus! E o tal do ABC? Ensinando-nos a soletrar? – Ca-ca, ce-ce, ci-ci, co-co, cu-"ÇU"- aí não tinha jeito, a sílaba "cu" tomava grandes proporções nas nossas cabeçinhas maldosas. Por que ela não soletrava cu-cu? Hoje dou boas risadas ao me lembrar do seu semblante sério, ao inventar uma pronúncia para bendita da sílaba e querer que em pouco tempo nós soubéssemos de cor e salteado, o alfabeto.
Minha mãe foi uma mulher muito perspicaz, decidida, e se tivesse oportunidade de estudar mais um pouco ou não casasse tão cedo, tenho certeza que chegaria à política. - Ponto prá você mãe, imagine se teria história pra contar se não tivesse dados seus dribles na vida. – E essas escapulidas dela para fazer o que gostava, não registrei no meu inconsciente para mais tarde vir a ser uma tragédia na minha psique – medos, fobias... Nada. Guardo como uma coisa boa, gostosa de lembrar e dar risadas das suas peripécias. Eu sempre fui uma pessoa à frente de minha época, e à medida que as paginas do livro da minha vida iam sendo passadas eu compreendia mais minha mãe. Essa foi a forma que buscou de fazer o que queria em meio a tabus, cobranças de filhos, autoritarismo machista... Uma maneira no mínimo simplória, mas que para a época até que funcionou, ou quem sabe meu pai era um autêntico Faz-de-conta? – “Faz de conta que eu acredito” - talvez pensasse ele. Lembro da minha mãe no carnaval vestida de pierrô juntamente com seus amigos e irmãos. E aqueles guizos na gola da fantasia que tanto me encantava! Meu pai lá em Alagoinhas, nós com minha avó materna - éramos pequenos demais para cair na folia de gente grande. Meu pai não gostava, era problema dele e se para isso tivesse que armar uma mentirinha, paciência.
Quando ficamos adultos e constituímos família, ela nunca foi estorvo para nós - pelo menos pra mim, pois sempre ficava com ciúmes quando ela preferia a casa da minha irmã, à minha. Até meu esposo fazia grande gosto em tê-la conosco - Pelo contrário, adorávamos sair com ela - almoçar fora era um dos nossos prazeres preferidos. Lembro-me que a
levávamos, para os barzinhos e viagens das quais uma, ela foi protagonista de um tremendo susto que passamos: Com a sua “metidez” de se achar auto-independente, embarcou sozinha no avião enquanto estávamos no toalete, e olha que já tinha quase setenta anos. Procuramos por ela por toda parte e a funcionária do aeroporto a nos avisar a todo o momento que o avião já ia decolar. Foi quando explicamos o que estava se passando e graças a Deus ela perguntou - É uma senhora baixinha e gordinha? Quando afirmamos que sim ela disse que já havia embarcado. Alívio geral! Quando entramos no avião lá estava ela sentadinha, calma, despreocupada e procurava fazer de conta que não estava entendendo nada do que falávamos, aliás, falávamos não, esbravejávamos. Lica, minha irmã, falava tão alto que todo mundo ouvia - dizia que ia amarrá-la a uma corrente para não sair mais de perto de nós. Depois do caso passado, relembrando a fantástica odisséia, lembro com muita graça vê-la lá sentada elegantemente, majestosa, como sempre foi! Parecendo um personagem de um desenho animado (por ser baixinha e arguta como ele) chamado Mr. Magu, que eu amava assistir
Passados os anos, fico feliz em saber que minha “mami” – uma forma carinhosa de chamá-la - fez história.
Hoje ela vive com meu irmão Bené – costumo chamá-lo de Grande Guerreiro, o meu mano novo. – O destino decidiu que eu não cuidasse mais da minha mãe – sempre era eu que a levava aos médicos, para fazer exames, e era eu a responsável pelas internações hospitalares, mesmo já casada, e com filhos pequenos, nada coloquei como empecilho para cuidar da minha mãe. Alternada entre minha casa e a de Bené vivia ela. Uma grande peça ele me pregou – tive um câncer que impôs limites a minha saúde. Fiquei fragilizada e hoje só me restou a tranquilidade de saber que ela é cuidada com tanto amor, carinho, desvelo, não só pelo meu irmão, mas por toda família dele. A recompensa de tanto desprendimento caminha a passos largos para essa família.
Não fui, não sou, nem nunca pretendi ser super, e continuarei com o firme propósito até os últimos anos da minha vida – tenho uma intuição que faltam poucos - de não querer jamais essa alcunha – Super, me lembra algo além das minhas próprias forças, do meu propósito de vida, sou uma mulher normal, atraída pelos opostos - Sou um paradoxo de mim mesma. Amo a vida no campo - árvores, pássaros sagüins cobras, rios, por a mão na terra... Como curto a cidade grande - cinema, compras, restaurantes, viagens - quando a “grana” permite – beber, embora muito pouco, dançar, ficar sozinha, e gostar de estar com muita gente em outros momentos; falar aos borbotões quando deveria calar, e ficar em silêncio em momentos que
deveria falar; fazer gracejos nos lugares mais sérios, e ficar séria em meio a grandes algazarras; estourar e logo estar calma, falar de sexo como de comida, principalmente com meu neto adolescente descobrindo as coisas agradáveis que ocorrem com seu corpo – ele fala, eu escuto, brinco, riu abertamente das perguntas picantes feitas sem nenhuma malícia, apenas pela curiosidade de saber. Choro quando estou triste e me descontrolo como qualquer simples mortal. Sei que esse meu jeito antagônico em lidar com biografias dessemelhantes levou-me a condenação sem direito a dúvida, se quer defesa. A esses eu dou indulto por me julgarem precipitadamente, pois diferentemente deles reconheço as suas fragilidades e dependências geradas pela falta de determinação própria. A liberdade de uma pessoa se mede pela capacidade de poder tomar qualquer decisão seja ela errada ou não, desde que ela possa arcar com as consequências e para isso só vejo uma forma: O trabalho. Advindo deste, a independência financeira – Nunca consegui me imaginar vivendo dependente financeiramente dos rendimentos do trabalho de qualquer pessoa que seja, fosse esse o meu próprio marido- Que não me outorguem o adjetivo de feminista, porque não sou, e não gosto, também não sou machista – tenho horror a mulher submissa. Sou uma mulher feminina dentro da normalidade, nada de porcelana. Nos tempos joviais fui maliciosa, provocante, fingia ser frágil para ser protegida pelo homem, muito embora sempre soubesse que era mais uma fantasia do que realidade; a mulher feminina precisa se fazer de frágil para que o seu companheiro se agigante e ela se arrebate de prazer da masculinidade protetora. A mulher machista, é submissa cordeira, sem opinião própria indolente, se deixa ser manipulada pelo machismo masculino. A mulher feminista, não tem encantos, quer sempre mostrar superioridade em relação ao homem, termina por transformar o seu companheiro– quando tem - em um prosaico Peter Pan. Não aprecio esse tipo de atitude, sempre gostei das medidas ajustadas a dois - Para a mulher a superioridade na astúcia, para o homem a masculinidade exposta no físico. Isso é química, não falha, é só decorar e nunca mais esquecer a fórmula.
O que fui? Uma pessoa diferente, uma mãe incomum – mas não ausente como querem hoje me adjetivar. Fui eu que encorajei minha filha a primeira consulta com o ginecologista - tinha ela seus treze, quatorze anos, não lembro. Dei-lhe a liberdade de entrar sozinha. Fui eu que os levei a maioria das vezes para o médico. Fui eu que cobrei sempre os estudos, como fui eu também que sentei, embora cansada quando chegava do trabalho para ensinar-lhes os deveres – trabalhava só um
turno e vinha às pressas para dar tempo Iraci ir para a escola. Infelizmente, por força da necessidade, voltei a trabalhar dois turnos e até pela madrugada para aumentar a renda da família. Quantos e quantos finais de semana trabalhei como extra para dar-lhes juntamente com o pai uma vida de maior prazer – clubes, restaurantes, praia, viagens, sempre com toda família - fizemos poucas viagens - São João - a maioria em Alagoinhas, Ilhéus São João em Aracaju – nessa, senti a falta da minha filha, ela não quis ir, preferiu ficar com o noivo – tinha apenas dezoito anos e esse fato deixou uma grande lacuna na época. Não faltei às festas escolares, e os levei pela primeira vez ao cinema, ao circo, e aos parques de diversões, sozinha - infelizmente o pai não curtia muito essas minhas programações, no máximo o parque da cidade, desde que não derramassem nenhum copo de refrigerante– ele realmente saia do sério com a falta de modos dos filhos - fui eu que enfrentei filas de horas e horas em pé para conseguir uma lata de leite que fosse, ou mesmo uma galinha viva na época da crise de 86 se não me falha a memória - faltavam alimentos- Saia quase de madrugada para enfrentar a disputa, o empura-empura por um pedaço de carne, como se fosse um troféu a ser conquistado, Depois da maratona da comida mais outra para enfrentar: ônibus super lotados além dos chamados “roceiros” que se aproveitavam do amontoado de gente no ônibus para praticarem suas vis estupidez. Tudo isso para chegar ao trabalho no horário.
Eu permiti que a minha cama virasse uma nave de invasores – inclusive sobrinhos - a minha cama tinha o doce apelido de coração de mãe. Cheguei até a propor ao pai que ele deixasse um colchão disponível para ele deitar nos dias que a cama estivesse superlotada. Jamais mandaria um filho voltar para suas camas, se vinha para nossa, é porque se sentiam bem, aconchegados entre mim e o pai.
Eu no meu senso de direitos iguais contrapus o pai pelo direito da minha filha namorar ao desabrochar dos seus treze anos.
Para aqueles que me julgaram inconseqüente, apenas respondo: eis aí meus filhos com defeitos e virtudes como qualquer cidadão, mas todos do bem. E aqui eu faço meu auto julgamento: Bem piores do que eu tem milhões de mães, melhor que eu também, mas com alguns zeros a menos.
Aquela mãe que se anula pra viver pelos filhos por certo não fui, e se duas vidas tivesse para ter oportunidade de ser diferente confesso que nas duas vidas seria igualzinha, ou talvez um pouco mais abaixo do que entendo como limite de abnegação. Sei que não me furtei do meu amor nem de carinhos, cuidados, dedicação e defesa da minha cria enquanto mãe. Só não entreguei minha vida – essa foi Deus que me deu e só Ele
poderia tirar-me o direito de gozá-la como eu quisesse e Ele permitisse Fui compreensiva em alguns momentos, noutros fui intolerante, autoritária, irredutível... E em outros, fui o fiel da balança. Enfim, fui simplesmente humana, ou seja, a mãe que não arrefeceu os seus ideais nem sua liberdade sem contudo deixar de participar da vida dos filhos, seja nos estudos, seja nas brincadeiras, ou na vida social. A esposa que não trocou a alegria de brincar, sorrir viajar sair com amigos pra viver somente um amor a dois, a filha, irmã, amiga... que não omitiu sentimentos antagônicos em relação a atitudes infaustas. – É assim que entendo viver a vida. A única coisa que não aceito é fazerem uma avaliação de mim achando que eu hoje quero aquilo que não dei. Isso nunca – eu quero e vou berrar no melhor dos caps luck, aos quatro cantos do mundo, mesmo que meu grito não tenha eco: RESPEITO, sim, respeito pela condição de ser gente. ATENÇÃO, pelo menos, por em alguns momentos da vida, dos filhos, já adultos, ter sido mais solução do que problema para eles. Do meu jeito e da forma que eu sabia ser, eu fui sim, mãe leoa. Esse legado ninguém tira de mim – não peço amor, não é isso, amor só se dá quando se tem, mas EDUCAÇÃO é coisa bem diferente e é um dever de todos. De uma coisa tenho certeza, filho nenhum tem o direito de julgar-me pela falta de amor – fui uma águia quando pressenti alguma rapina querendo devorar a minha cria. Também não aceito ser taxada de repressora, não e não. Fazíamos reuniões na família onde todos tinham o direito de se expressar, falar o que não estavam gostando nas nossas atitudes... Era muito interessante, porque, sindicalista que era, levava para casa as regras de uma reunião com ordem, onde todos tinham que se inscrever para falar na sua hora pelo tempo que ficasse acordado. Foi muito proveitoso. Eles diziam ali na “lata” tudo que não estavam gostando em minhas atitudes e do pai. Que ao menos um deles um dia me faça justiça, das quantas vezes fui de encontro ao pai para garantir a liberdade de ir e vir de cada um. Fui cúmplice nos namoricos, nas idas a festinhas. Certa vez levei minha filha - ela tinha quatorze anos - para uma festinha de adolescentes onde não conhecia ninguém, ela foi com o namoradinho. O pai não concordava com isso, mas eu fui firme e disse: - eu levo sozinha, mas ela vai. E eu de lá do meu cantinho no salão, só olhando a minha filha dançar alegremente se distraindo com liberdade. Só tomei um susto quando um garoto, amigo dela levantou-a nos braços. Nessa hora meu coração gelou, pensei que iam se esborracharem no chão.
Sei que não poupei palavras duras quando achei que tinham pisado na bola. Hoje, na fase adulta deles, sou “persona non grata” por me
posicionar, falar verdades que sei que machucam - esse é o lado ingrato de ser mãe e por amor não podemos nos omitir. Para as mães os filhos sempre serão eternos aprendizes, pois achamos que a sabedoria da vida é nos outorgada pelas experiências adquiridas ao longo dos anos vividos Errei sim, e feio, quando acreditei que mesmo na casa deles me era permitido o direito de falar o que não estava achando certo – Essa regra como diz meu “geninho” Victor, para mim era clara, mas me enganei, os tempos são outros e a pai e mãe não são permitidos expressarem opiniões nas casas dos filhos, imagine reclamar, até mesmo falar mais alto com um filho... Os costumes mudaram e a única coisa que se é permitido a um pai ou uma mãe na casa de um filho é recolher-se ao seu canto, ficar quietinho sem esboçar nenhuma palavra, a respeito do que vêm de errado, porque cada palavra pronunciada contra alguma atitude deles a exemplo da falta de atenção, isolamento forçado, arrogância, falta de controle, determinação e mentiras era uma sentença assinando a própria condenação à expatriação do seio da sua família. Desculpem filhos, eu falhei, é verdade, não acompanhei os fatos que aconteciam sobre os novos comportamentos da geração de vocês. Eu pensei que não existiam atualizações nem novas versões para filhos, ou será que lá no meu íntimo eu sabia mais me neguei a aceitar tamanha estupidez? A não ser que se estivesse falando em anomalias e isso existe tanto para filhos como para pais, desde que o mundo é mundo - pais que estupram, mães que matam, filhos que agridem, matam, mas isso não são versões, não são novas atualizações, são anomalias psicóticas.
Como disse anteriormente fui uma mãe dentro dos padrões aceitos pela sociedade – embora não seja esse o meu modelo de sociedade, a minha sociedade é Alternativa - mesmo assim cumpri, não com rigidez, os padrões dessa sociedade hipócrita. Só não deixei que graduassem o meu amor, esse é meu, vem das minhas entranhas e só eu posso avaliar a imensidão dele. É certo que não abri mão da liberdade de sair para desfrutar de tudo que eu gostava e podia fazer sem abdicar do direito de ser esposa nem mãe. Só não podia levar os filhos a lugares que não convinham a uma criança, mas quando podia sair com eles não me causou nenhum sacrifício – pelo contrário me sentia muito bem estar junto aos meus filhos, brincando, sorrindo, felizes... Nas minhas saídas ou viagens, tinha a certeza da consciência tranqüila, pois nunca deixei meus filhos em estado de insegurança – nunca ficaram sozinhos. Meus filhos foram privilegiados, o pai trabalhava de turno e isso facilitava um maior contato no dia a dia... Abro aqui um parêntese para dizer que muitas vezes faltei trabalho para levá-los ao pediatra sozinha num ônibus cheio com duas
crianças no colo e outra na barriga –morávamos distante do centro - Duros tempos! Aos sábados esse papel sem dúvida nenhuma, foi sempre meu, sair com eles para levá-los a praia, era uma coisa que não abria mão, ia com algumas colegas do trabalho, enquanto o pai ia jogar o merecido babinha dele com os amigos – isso já depois de deixar de trabalhar de turno. Os domingos eram dedicados a toda família, inclusive os namorados que participavam das idas aos clubes, restaurantes e tudo que pudéssemos dar para eles. Não os privei da minha companhia como querem alguns hoje utilizar como desculpas pela falta de assistência a nós, hoje idosos, e já não tendo mais o poder aquisitivo de outrora que tanto serviu a eles.
Fui uma esposa contestadora – talvez diferente dos padrões usados na época. Uma filha, uma amiga dentro da normalidade. Que me perdoem todos esses que esperaram mais de mim. Eu dei a eles o meu melhor, disso tenho certeza, e no meu melhor infelizmente, não tinha quem sabe o que eles queriam, mas era o melhor que eu tinha, eu não guardei pra mim, eu me desapossei de todo sentimento de amor que tinha para dar aos que amava, e amo.
E como esposa? Ah D. Margarida... - Aí as conclusões tiradas foram várias, mas a minha uma só: Uma estrela com luz própria. Independente, jamais troquei a minha singularidade, para partilhar da pluralidade grafada nas tábuas invisíveis da sociedade. Eu não fui um satélite, não saberia viver da luz dos outros, fosse esse a minha alma gêmea, seria por demais tenro, e terminaria por esfriar uma relação tão única. A minha luz nascia do meu inconformismo daquilo que julguei perverso, injusto, incorreto. E prenhe de luz precisava iluminar a mente dos que, tal qual um satélite giravam em torno da minha vida profissional.
Foram momentos difíceis de serem tomados! De um lado a cobrança familiar, do outro, os que viviam nas trevas da ignorância dos seus direitos enquanto trabalhadores, vivendo num estado total de conformismo que havia momentos que desalentava. Mas aos poucos fomos conseguindo, e até funcionários com cargos de chefia eu convenci a filiarem-se ao sindicato. Isso para mim foi ímpar, porque percebia a confiança deles em mim e no meu senso de justiça que segundo eles era a minha grande virtude. Contudo, para isso eu tinha que me dividir entre lar e sindicato e várias vezes chegava a casa duas, três horas da manhã, bem como, passava dias fora em viagens para reuniões da federação, congressos, plenárias, rodadas de negociações com a classe patronal, idas e idas ao Congresso Nacional... Não teve jeito, aconteceu o que para mim era uma coisa
impossível - a ruptura no casamento. Quanta ingenuidade pensar que a família entenderia a luta de uma classe trabalhadora! Enquanto eu batalhava por melhores condições de trabalho, e melhores salários, meu marido não foi forte o suficiente para suportar tantas lacunas. Não o culpo por isso. Talvez pelo meu ufanismo e afã tenha exagerado na luta contra as discrepâncias e desigualdades sociais. Ele procurou compensar essas minhas ausências determinadas pelo combate à exploração sócio-econômica de uma classe, nos braços de outra mulher. Fui percebendo cada vez mais a sua frieza, e desculpas mal elaboradas, que não me deixou dúvidas sobre o que estava acontecendo com ele. Era um homem em plena virilidade masculina, e foi se acostumando com essa vida ambígua. Até que começou a sair sozinho, mentir que ia visitar a mãe, quando na realidade estava em outros lugares, vivendo novas experiências afetivas. E foi nesse momento - com a dor da perda é que percebemos a intensidade do amor – que chorei, esperneei, gritei, desci do salto, expus para todos a minha dor, sem vergonha de implorar de volta todo o amor que ele me deu que era lindo demais! Deixei à mostra a minha casca tênue que, aliás, nem sabia ser tão frágil. Saia com amigos para as baladas, mas nada preenchia o vazio, briguei, passamos a dormir separados, e muitas vezes ele, por pena a me ver tão deprimida, fazia amor comigo. Eu me sentia pior. Até que um dia, numa dessas brigas que já estavam virando corriqueiras, ele me pediu que o deixasse viver a vida dele e que eu também fosse ser feliz arranjando outra pessoa - esse com certeza foi o momento mais dolorido na minha vida conjugal, foram muito fortes essas palavras. Meu ego foi ferido, destroçado, vilipendiado – Meu Deus como doeu, como foi certeiro esse tiro. Juro que procurei alguém, mas, ou eu era demasiadamente sem atrativos, ou estava cega. Entretanto eu não sou mulher de desistir fácil, perder o amor da minha vida para outra? Jamais – foi muito profundo o que vivemos a dois para se acabar assim. Eu sentia que ainda não tinha perdido a guerra. Percebi então que o meu amor estava acima dos meus ideais, travei uma batalha comigo mesma, e terminei por decidi amainar as minhas atividades sindicais e ficar mais tempo com minha família, não por demonstração de fraqueza e subjugo de marido, é que entre as duas coisas o ponteiro pendeu mais para o lado família, além do que jamais perderia o homem que me ensinou os prazeres do sexo - foi o meu primeiro e único professor – que me fez mulher, que me tocava,explorava como um mapa o meu corpo despertando sensações em mim que nem eu mesma sabia que possuía, que me deixava ardendo de prazer, e melhor que isso: um homem romântico, cavalheiro, atencioso... Ao diabo o orgulho, sábia, decisão!
Atenuei as minhas atividades sindicais, sem, contudo, abrir mão daquilo que eu acreditava. Meu marido voltou para o aconchego do nosso lar com o ego lá em cima – tinha conseguido fazer eu “lutar” por ele – tudo que ele mais queria era estar em primeiro lugar na minha vida.
A pessoa que foi usada, para abalar o meu alicerce nunca soube quem era e espero que ela tenha encontrado alguém que lhe tenha feito muito feliz, pois Deus a utilizou como instrumento para desvendar-me os olhos. E o mais incrível: ganhei o maior aliado nas minhas lutas trabalhistas pela minimização das disparidades sociais e garantias dos direitos conquistados. – O meu marido, que além de voltar pra mim inteiro, pleno, me encher de atenção e carinho, terminou por muitas vezes me acompanhar às reuniões do sindicato.
A mulher aguerrida que ama e confia em si mesma, é sábia e não desiste do amor por orgulho e covardia.
O que não fui? Doce feito mel, tão pouco amarga que nem jiló. Do que eu me arrependo? De nada do que fiz. Nada que tenha vergonha de lembrar, que quisesse sepultar para sempre na minha memória. Arrependo-me sim, do que não fiz: deveria ter me embriagado mais – devo ter dado muito vexame nas minhas ingestões de bebidas alcoólicas, sim, mas e daí? Posso ter causado constrangimentos em alguns que talvez tenham vivido a vida sob o jugo da austeridade, porém tenho certeza que devo ter arrancado muitos risos de outros que têm com um único objetivo viver sem cobranças nem julgamentos mal formados das atitudes de alguém em momentos de descontração, e isso já me leva a crê que tudo valeu. O dom de sorrir ainda é a melhor coisa que um ser humano carrega consigo. Como dizia Chico Anísio do alto da sua inteligência privilegiada interpretando o personagem Nazareno: Sou, mas quem não é? Deveria ter pandegado mais, namorado mais, transado mais, estudado mais, me soltado mais, ter cuidado mais do meu corpo, ter sido mais vaidosa... Ter vivido mais intensamente! E olha que eu vivi!
Sempre abusei do uso da palavra xifópaga como justificativa de não ter nascido presa a ninguém, amava baladas, barzinho, viagens, política, sindicato – meu vício maior - sempre fui ativista e chego aos sessenta anos sentindo ainda, que guardo uma paixão por política, hoje, mais no âmbito social que trabalhista. Viajei, fiz greve, corri de polícia, de bombas de efeitos, fui diretora de sindicato, negociei com ministros de estado, presidentes de estatais, e por fim fui membro eleito do Conselho de Administração do Instituto de Seguridade Serpros - O cargo mais alto da Empresa. Pouco para se atestar como uma história de vida digna de um
Fellini, mas é minha história onde eu mesma fui atriz, cineasta, produtora, co-produtora, diretora...
E foi com as minhas atitudes por vezes incompreendidas pelos filhos, pelo marido e por tantos outros que fiz a minha História – Eu tenho história, não passei por esse mundo como muitas pessoas que dormem, acordam, vêm o dia passar num estado de inércia de fazer dó, e voltam a dormir para acordar com um novo dia. Novo? Só se for o calendário, porque nada de novo fazem acontecer. Pobres criaturas!
Quem sou eu hoje? Uma Sessentona que perdeu o encanto pela coisa proibida, porque na minha idade nada mais me é proibido, vivo um amor que me completa em tudo: esposo, amante, companheiro e amigo. Uma sexy literalmente. Uma sexagenária com cabeça de quarenta, trinta, vinte, sei lá... Que curte ser avó – inclua-se aí Mel, minha neta, cadelinha salsichinha e Bob meu bisneto, cãozinho salsichinha também, hoje uma das minhas grandes alegrias - virar criança junto com os netos, mas com limites de tolerância para suportar as algazarras e brincadeiras deles. Que ainda tem prazer pelo sexo, caminha cinco quilômetros diariamente, Que vive conectada ao mundo via internet - costumo dizer que viajo muito, até demais, com meu ratinho timoneiro. A favor de tudo que traga felicidade e bem estar às pessoas... Sim, sou em pró de tudo que desperte sensações, emoções, liberdade, vida palpitando – não importa que essa seja de uma maneira oposta a que a sociedade definiu como correta. Afinal quem é a sociedade? Uma coletividade que impõe papéis traça regras e fecha os olhos para o inescrupuloso que lhe traga dividendos, com interpretação equivocada sustentada por falsos moralismos. Dizer sim para isso o caramba.
O único pró que risco da minha vida, é a busca da felicidade em detrimento de outrem.
E que vivam os excluídos – os que não se dobraram a conceitos pré- definidos, os formados na faculdade dos bancos dos botequins, os que enxergam com os olhos da alma, os que se locomovem com o pensamento, os andarilhos, os negros, brancos, amarelos, vermelhos índios... os loucos, os que não sedeixam escravizar pela moda, os naturalistas, os heterossexuais, bi, homos, ativistas, aidéticos, cadeirantes, os que vivem apenas um dia de cada vez, os que escolheram a rua como morada, os libertários. Por sobre tudo os que, tal qual o bambu que se enverga mais não quebra, não se partiram com os julgamentos equivocados e até injustos feitos a eles. E por fim todos os anarquistas.
Ter liberdade é fazer o que se sente bem, o que se gosta sem prejuízo dos seus iguais.
Eu nasci livre, leve e nua, e morrerei livre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário